por Vera Saldanha
Desde muito cedo, em minha vida as festas juninas sempre me encantaram. Sua preparação, adultos, jovens, crianças em grande movimentação e alegria. Fechando a rua dos moradores, colocando bandeirinhas coloridas, balões, barraquinhas, criando um grande espaço festivo, repleto de cores e sabores. Cada santo com sua lenda popular, Antonio casamenteiro, protetor dos namorados, faz achar o perdido, realiza milagres.
São João o festeiro, protetor de grávidas e casados, dos doentes principalmente no que se refere a dor de cabeça e garganta.
Pedro o santo das chuvas, protetor das viúvas e dos pescadores, aquele que tem a chave da porta do céu.
Festas que habitam o inconsciente popular que mobilizam com suas lendas e canções típicas. Que geram um certo fascínio e encantamento nas crianças, as figuras típicas de Sto. Antonio com menino Jesus, S. João com um cordeirinho em seu colo e S. Pedro com duas chaves na mão, uma de bronze e outra de prata ou de cristal.
Afinal, para que tal mobilização acontece na consciência coletiva? Sabemos que os contos, lendas, festas tradicionais, são um canal que nos expressam aspectos de realidades maiores, assim como os mitos no plano coletivo que nos remetem ao princípio do ser. Trazem muitas vezes aspectos ignorados pelos indivíduos, que nos solicitam uma escuta à partir dos símbolos com os quais se apresentam, com a história que nos contam.
Qual a grande história, a história Sagrada que está por trás destes santos, qual seria a relação entre eles?
De imediato a presença do Cristo e a própria história de Jesus se destaca como um elo presente na história de vida destes seres especiais.
Não ao acaso, S. João nasce seis meses antes de Cristo, torna-se um precursor do Messias, o batiza nas margens do Rio Jordão, tem seguidores que depois se tornam discípulos do Cristo, entre eles S.Pedro. Conta-se que seu nome verdadeiro era Simão ou Simeão, segundo Clemente de Alexandria, ele era casado e tinha filhos. De acordo com a tradição, a mulher de Pedro sofreu o martírio. Vivia em Cafarnaum e tinha a profissão de pescador.
Como tantos de seus contemporâneos judeus, ele e seu irmão André foram atraídos pela pregação de João Batista.
Quando pela segunda vez André foi a João, este apresentou Cristo – eis o Cordeiro de Deus. André conta a Pedro e o leva até Jesus que diz a ele – Tu és Simão filho de Jonas – tu serás chamado Cefas que foi interpretado como Pedro (Cefas – Kephas em aramaico Kipha – Rocha), traduzido Petros do Latim Petrus.
Vinde a mim e vos farei pescadores de homens. Em outra passagem Pedro diz à Cristo: “Tu tens a palavra da vida eterna” e nós cremos e sabemos que tu és o Santo de Deus, “Tu és Cristo – filho de Deus vivo”.
Então Cristo diz: Bendito és tu Simão Bar-Jona porque nem a carne nem o sangue te revelaram isso, mas meu pai que estas no céu, e te digo:
– Que tu és Pedro (Petros) e sobre esta pedra (Petra) edificarei minha igreja (ekklesian) e as portas do inferno não prevalecerão contra ela. E te darei as chaves do reino dos céus. E tudo que ligares na terra será ligado no céu, e tudo que desligares na terra será desligado no céu.
Santo Antonio, frei agostiniano, após encontro com Francisco de Assis, torna-se Franciscano. Tem o menino Jesus em seu colo, e conta-se do barão que abrigava Antonio em um quarto de hóspede, viu pelo buraco da fechadura que o frei Antonio estava envolvido por uma luz de brilho muito forte e em seu colo sobre um livro grosso um bebê que seria o menino Jesus sorrindo que lhe estende os braços, fecha os olhos atordoado e ao abrir, só vê Sto. Antonio de braços vazios. Além disso, no convento dos Clarissas em Arcella, onde Sto. Antonio morreu em 13/06/1231, próximo a sua morte aparece-lhe o menino Jesus na cela de Camposampiero. A imagem na qual Sto. Antonio é retratado sempre nos mostra o menino Jesus sobre o livro nos revelando que sobre seus saberes repousa e ilumina o divino, o espontâneo e intuitivo. É a razão iluminada pelo amor cristico.
Este elo, a presença do Cristo na história destes seres, nos recorda de algo ainda maior: Cristo é o grande arquétipo da síntese do feminino e masculino. Andava acompanhado não só de homens, mas de mulheres e, após sua morte, é para uma mulher que primeiro aparece.
Há algo forte na história destes três seres em relação às mulheres, além de Antonio proteger os namorados, João as grávidas e os casados e Pedro as viúvas.
Neste momento é importante recordar que nas últimas décadas alguns estudos, pesquisas e investigações arqueológicas vieram nos revelar que em torno de cinco mil anos antes da era cristã haviam sociedades de relações de igualdade, valorização e respeito entre homens e mulheres. Entretanto alguns povos bárbaros, arianos e semitas com o degelo dos polos foram descendo as estepes russas, entraram pela Eurasia, Europa e foram matando os homens que não eram treinados para a guerra, banindo todos os vestígios da cultura das Deusas. Aprisionavam as mulheres e crianças fazendo-as crescer acreditando que Deus era um ser do sexo masculino – e portanto os homens eram superiores e as mulheres eram inferiores -, criando uma grande divisão entre homens e mulheres, além do equivoco entre gênero e arquétipos na psique, dando origem a inflação do masculino e ao patriarcado, influenciado até os nossos dias a política, as religiões, a economia, a educação e as relações na sociedade.
Feminino “é um adjetivo que tem suas origens no termo latim “feminino” que significa algo que é de mulheres ou menina, e tem características como gentileza, delicadeza, beleza, cuidado, sensualidade e intuição.
Porém, algumas tradições antigas, como o Taoismo, trazem indicações referindo-se a uma polaridade masculino-feminino presente em distintos aspectos na natureza tais como sol-lua, dia-noite, entre outros. Os estudos sobre a psique humana revelam que o feminino, enquanto substantivo, indica um padrão universal inato na psique humana, presente em homens e mulheres e que foi denominada por Jung de arquétipo do feminino e arquétipo do masculino, presente tanto em homens como mulheres, denominado de Anima ao arquétipo feminino presente no homem, de Animus ao arquétipo masculino presente na mulher.
Ignorar estes aspectos resultaram em danos à nossa humanidade, com a repressão do feminino em homens e a inflação egoica do arquétipo masculino, com os aspectos de divisão, competição, guerra e perversão. Assim como a repressão do masculino na mulher e a desvalorização do feminino enquanto arquétipo e gênero, em seus aspectos intuitivos, sensibilidade no cuidar do corpo e da terra.
O movimento feminista apenas promoveu a liberação da repressão do masculino na mulher. O que foi um passo, há poucas décadas atrás a mulher não podia votar, sem direito ao domínio público, restrita ao âmbito privado.
Entretanto, a real dimensão do feminino, a sensibilidade, sexualidade saudável, bondade, intuição, comunhão continuam ainda em mulheres e homens, faminta, desnutrida. Proliferando as chagas do feminino ferido, tais como a traição, volúpia, sedução, manipulação, vingança, maledicência, mentira, intriga.
Assim, ao trazermos este olhar do feminino, enquanto arquétipo e gênero para a história de vida de Antonio, João e Pedro, podemos sugerir que há um convite ao resgate da mulher à um lugar justo em nossa sociedade.
A mulher de Pedro sofreu o martírio; há que se poder exercer a fé livremente em nossa sociedade.
Sto. Antonio, conhecido por seus inúmeros prodígios, bilocação ressureição de mortos, inúmeras curas e muitos milagres à favor das mulheres, quando fez um recém nascido falar para defender a mãe acusada injustamente de infidelidade pelo marido, por exemplo.
Outro episódio no qual certa senhora cansada de sua miséria queria que sua filha se prostituisse, não aceitando ora a Sto. Antonio, que deixa cair de sua imagem um bilhete endereçado à um rico comerciante para que ele desse o equivalente ao peso deste papel do bilhete em moedas de prata assinado Antonio. O comerciante achou graça mas qual não foi sua surpresa pois só equilibrou a balança quando as moedas somaram 400 escudos, dote necessário ao casamento, livrando-a da prostituição. É preciso dar dignidade à mulher. Respeitá-la.
Lembrando também o milagre no qual Sto. Antonio livra seu pai da condenação a forca, por meio de sua defesa, em bilocação. Tal milagre sugere que tanto no plano real como simbólico Antonio tinha uma integração grande entre o conhecimento, o coração e a intuição. Ele impede a separação da cabeça e do coração em seu pai.
E neste sentido de resgate em homens e mulheres, do feminino e masculino saudáveis, que sem dúvida S. João nos traz um grande alerta!
João foi um filho muito desejado por seus pais que viviam no alto das montanhas da Judéia, próximo a Jerusalém, não abençoados por não terem filhos. Isabel era considerada estéril e já estava em idade avançada, quando aparece para seu marido Zacarias, o anjo Gabriel e lhe diz: não temas Zacarias porque Deus ouviu tua oração tua mulher dar- te- a um filho a quem dará o nome de João.
Como não acreditou e contestou o anjo, Zacarias fica mudo sem conseguir mais pronunciar uma única palavra. Quando retorna a sua casa após alguns dias, constata a gravidez de sua esposa. Maria, mãe de Jesus, era prima de Isabel. O anjo Gabriel, também anunciou a Maria ser a predestinada do filho de Deus, e teve o grande sim de Maria. O anjo fala à Maria da gravidez da sua prima Isabel, e esta vai ao encontro dela.
Ainda no ventre de Isabel, a criança reconheceu Jesus e estremeceu, então Isabel fica plena do espirito santo proclamando à Maria: “Como é possível que a mãe do meu senhor venha até mim? Porque, vê bem, o menino sobressaltou-se dentro de mim e abençoou-te”.
Maria fica durante algum tempo na casa de sua prima, auxiliando-a. Quando ela vai embora, Isabel promete-lhe anunciar o nascimento de seu filho erguendo um mastro e ascendendo uma fogueira.
Assim o faz no dia 24 de junho do ano 2 A.C.. O dia do nascimento de João é também chamado de Aurora da Salvação. O fogo é símbolo da autopurificação, mas também da iluminação. O fogo está associado ao espírito do masculino divino. No dia da circuncisão do bebê, ao sugerirem outro nome, seu pai escreve em uma tabua “João” e voltou a falar.
Adulto, João vai morar no deserto, onde alimenta-se de gafanhotos e mel silvestre. Aos 30 anos torna-se um pregador e fica conhecido como o profeta, homem enviado por Deus. Aquele que anunciava a vinda do messias. É seguido por muitos, entre eles o próprio Pedro e seu irmão André, que se tornaram discípulos do Cristo. Batizava no rio Jordão, daí ser chamado João Batista, propondo arrependimento, jejum e orações. A imersão na água simbolizava uma grande mudança de vida interior e está associada ao feminino sagrado. Dizia sempre: “eu não sou Cristo completando, eu batizo na água para a penitência, mas vem outro que é mais poderoso do que eu de quem eu não sou digno de desatar as correias das sandálias, ele vos batizará no espirito santo e no fogo”.
Quando Jesus foi ser batizado por João ele diz: “eu é que deveria ser batizado por ti”, mas Jesus se coloca diante de João para ser batizado e, então, o Espirito Santo desceu sob forma de uma pomba e o céu se abriu e ouviu-se uma voz: “este é meu filho muito amado, em quem pus minha complacência”. Assim, Jesus começou sua vida pública. Do próprio João Jesus dizia “entre os nascidos de mulher não há maior profeta que João”.
Através da história de sua vida, desde a sua concepção, nos revela o poder da mulher sábia, da anciã, da mãe, da virgem e do espírito santo. Mas é também João que denunciava as injustiças, abuso de poder e a Herodes Antipas por sua ligação ilícita com Herodíases, esposa de seu irmão (Marcos capítulo VI, versículo 17 a 28). É nesta passagem então que as chagas do feminino se mostram intensamente em seu poder que divide, manipula, seduz e se vinga.
Por meio de Salomé, a filha jovem e sedutora de Herodíases, a qual dança para Herodes e este fica extasiado, dizendo à jovem que lhe daria tudo que ela pedisse. Nesse sentido a passagem bíblica também é reveladora e nos faz refletir: Qual o legado que queremos deixar para os nossos descendentes? Salomé vai perguntar à sua mãe o que deveria pedir e esta não hesita em dizer: “a cabeça de João Batista em uma bandeja de prata”; a ser exibida naquele banquete de exaltação do poder egóico do masculino e ao poder devastador das chagas do feminino.
Coube à mãe, a mulher, decidir qual pedido deveria ser realizado, cabe às mulheres decidirem quais as ideias que querem ver realizadas. As mulheres precisam tornar-se conscientes do seu imenso poder. O princípio feminino possui as chaves da realização na matéria e esta realização pode ser para o bem ou para o mau.
Da mesma forma que as mulheres podem gerar filhos, em planos mais sutis, podem servir para encarnar ideias, projetos, dar-lhes corpo.
Venerado como santo, mártir e profeta, João fecha o antigo testamento e abre o novo testamento. Poderíamos chamá-lo do Santo da Era da Transição Planetária, na qual nos encontramos no planeta Terra. Foi uma voz a clamar no deserto, a anunciar o Messias. Talvez nestes 2 mil anos tenhamos atravessado o deserto interior de nossa alma, separando a cabeça do coração e do corpo, como homens e mulheres. Uma alma sem corpo, um corpo máquina sem coração. A condição de mulher socialmente colocada como inferior ou de forma demoníaca em certas religiões, só contribuiram para a exacerbação das chagas do arquétipo do feminino nas mulheres e também em homens. Muito se diz que é a mulher que dará a luz a um novo tipo de homem, mais espiritualizado, mais harmonizado. Para conceber o Cristo, Maria preparou-se milhões de anos nas esferas superiores, mas teve o apoio, a confiança e proteção de José. Isabel, ao conceber, teve o silêncio de Zacarias, constatando o milagre e voltando a falar quando pronunciou o nome dado pelo anjo Gabriel. O pai de Maria – mãe de Jesus -, Joaquim, jejuou 40 dias no deserto, pedindo a graça de um filho, pois Ana, sua esposa, era estéril. Foram homens que integraram a dimensão do arquétipo feminino e masculino em sua missão de vida.
Talvez agora já é tempo de acordar “João” dentro de cada um de nós. Deixar que o feminino sagrado com maestria na arte do cuidar, do curar, una nosso corpo. Nos resgate a inteireza de nosso ser, não a divisão. Permita que o feminino divino nos cure. Una em nós a cabeça ao corpo, um corpo com coração, o feminino ao masculino, que poderá sim anunciar o nascimento do Cristo interno, o poder de comunhão, o poder do Amor.
A matéria é a expressão, a forma na qual se percebe o pulso eternamente criativo da vida, do propósito, da consciência desperta. É dar visibilidade, vida, plenitude, à alma e ao espírito. Isto é o que São João nos convida.
Acordai, Acordai João em cada um de nós.
Acende o fogo sagrado, a centelha divina no nosso coração!
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