Espiritualidade e religiosidade
O tema “Espiritualidade e risco cardiovascular” é altamente complexo mas ao mesmo tempo impactante nos aspectos filosóficos, psicológicos e sociais. Numa revisão da literatura, efectuada para a redacção deste artigo verifica-se, que já em 1998 a Organização Mundial de Saúde colocou a espiritualidade na sua definição de saúde: “saúde é um estado dinâmico de completo bem-estar físico, mental, espiritual e social, e não meramente a ausência de doença ou enfermidade.”
O conceito de saúde, colocado nessa ampla definição, deveria ter obrigado as universidades do mundo inteiro a mobilizarem-se para acrescentar a espiritualidade aos seus currículos de saúde, o que não se verificou. A ascensão da medicina baseada na evidencia terá contribuído para isso, isto é, a não inclusão desta área nos curriculos das Faculdades de Medicina. Só no inicio do século XXI, se retomou o conceito clássico de medicina baseada na pessoa e na experiencia clínica, mas que teria, também, de ter evidências, através de estudos com metodologia apropriada.
Foi exactamente isso que aconteceu sobretudo na sequência do desenvolvimento da Psicologia Positiva, desde que Seligman presidiu à Associação Americana de Psicologia. Passou a dar-se, também, a mesma importância a propiciar-se bem estar pessoal e a mantê-lo, bem como a situações de doença já existentes. Começaram a investigar-se valores como perdão, gratidão, compaixão, entre outros, em relação com perturbações pré-existentes, como o stress (ansiedade) e depressão ou a relação daqueles com a ausência destas situações clínicas.
Estudos científicos
No estudo InterHeart, os fatores de risco psicossociais (stress e depressão) foram responsáveis por 33% do risco atribuível da população associado a infarte agudo do miocárdio. No estudo InterStroke, observou-se, que os factores psicossociais, (stress e depressão) foram responsáveis por 17% do risco atribuível da população associado ao acidente vascular cerebral.
Se os estudos nesta área – da espiritualidade e conexão com saúde – foram iniciados por psicólogos, curiosamente, é na área da cardiologia, que os estudos médicos foram pioneiros. Em termos internacionais regista-se, que a Sociedade Brasileira de Cardiologia, desde 2019, tem sido muito activa nesta área de estudo, publicando, inclusivamente, em 2021, um excelente artigo de revisão, com o título “Posicionamento sobre Hipertensão e Espiritualidade”.
Foi este e cuja leitura aconselho vivamente, que em grande medida orientou o presente artigo. Estudos clínicos, que investigaram a relação de espiritualidade/ religiosidade com a pressão arterial e marcadores biológicos são observacionais e a maioria sugere menores valores de pressão arterial (PA),menores níveis de marcadores inflamatórios, redução da atividade simpática e dos níveis de cortisol.
Práticas de espiritualidade/religiosidade, em especial a participação em cultos, religiosidade intrínseca, preces e meditação associaram-se inversamente com marcadores fisiológicos de saúde, tais como menos stress/ ansiedade, menores valores de pressão arterial e de marcadores inflamatórios (PCR). Se na profilaxia do risco cardiovascular, os estudos e resultados não são todos concordantes na hipertensão arterial, o ensaio prospectivo Nurses’ Health Study II, avaliando 44.281mulheres não hipertensas, as mulheres, que frequentavam serviços religiosos eram menos propensas a desenvolver hipertensão arterial. Sabe-se que a hipertensão arterial (HA) é doença de elevada prevalência e principal fator de risco para outras doenças cardiovasculares.
Existem evidências da associação entre Espiritualidade e Religiosidade (E/R) e resultados positivos, tais como Doença Coronária, Insuficiência Cardíaca e HA. Em conjunto, E/R foram associadas a melhores hábitos de vida (menos sedentarismo, etilismo ou tabagismo), menores valores de PA, sobretudo a diastólica, menor risco de HA e melhor adesão terapêutica. Bem-estar espiritual isoladamente pode ser um fator cardioprotetor, por estar relacionado com menores níveis de pressão arterial (PA), glicémia, triglicéridos e colesterol LDL. Por outro lado, um estudo observou maior probabilidade de HA associada à maior frequência de orações, mas menor probabilidade de HA associada a variáveis de propósito e perdão.
Como já referido, embora os resultados de estudos avaliando espiritualidade/religiosidade não sejam todos concordantes, quanto à menor ocorrência de hipertensão arterial em pessoas que têm prática de espiritualidade/ religiosidade, alguns deles demonstraram menores valores de pressão arterial sistólica e menor incidência de hipertensão arterial, directamente relacionados com a frequência de práticas religiosas.
É interessante assinalar, que pacientes de doenças cardiovasculares, conscientes que pessoas oravam por eles, referiram terem experimentado melhorias na qualidade de vida, relacionadas com a sua saúde. Naturalmente, que outros factores, independentes da espiritualidade/ religiosidade, tais como factores psicossociais intervêm no comportamento da pressão arterial e, por conseguinte, no aparecimento de hipertensão arterial. Não esquecendo necessidades básicas, segundo Maslow, tais como “estar saciado e quentinho”, outras como a personalidade, tipo de trabalho, isolamento social, saúde mental, depressão e perturbações do sono seriam de ter em conta.
Prática da Espiritualidade
A sua prática nada tem a ver com a promoção de religião, nem com prescrição de orações ou práticas religiosas. Decorrem de estudos que comprovam o seu benefício, independentemente da E/R, embora embora remetam para fortes conotações com valores pertencendo ao espectro daquelas.
A paz interior, naturalmente, remete para aspectos emocionais e corporais. Nesta abordagem sucinta, inicia-se pela pacificação somática, com técnicas de relaxamento, comprovadamente eficientes. Para os aspectos emocionais, considera-se, que decorrerão da prática das outras três dimensões conotadas com a espiritualidade. Como se referiu, é uma escolha pragmática, tendo em conta as limitações da dimensão do artigo. Na abordagem seguinte, segue-se a indicação de Camões sobre o Amor (talvez o núcleo da espiritualidade): “Vale mais experimentá-lo, que julgá-lo, mas julgue-o (imaginando e vivenciando) quem não puder experimentá-lo”.
Por: Mário Simões, Professor Jubilado de Psiquiatria da FMUL.
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